domingo, 27 de junho de 2010

RUI PIRES CABRAL

RESTAURANTE POLACO


A noite é sustentada pelos seus enfeites
como um homem morto ligado às máquinas.
Os clientes folheiam livros, tudo polacos
do mesmo quarteirão. Percebemos
de repente: há qualquer coisa acima das palavras
que não se deixa decifrar. Em cidades estranhas
dispomos melhor dos sentidos, somos arriscados
nas nossas intuições. E depois da sopa, do chá
morno, ao sair para a rua, podemos descobrir
que ainda estamos vivos e que no fim de contas
nunca conhecemos outra condição. Esta é a hora
que nos representa. E aquilo a que chamamos realidade
segue connosco na mesma direcção.


Periférica, n.º 3, Vila Pouca de Aguiar, 2002.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

X


Nesse dia de setembro desenhei a árvore que
sustém o torso humano; os ramos
trazem a vibração de um instrumento
mantêm um som semelhante ao mover articulado
das patas de uma aranha.

Parece-me que nos últimos dias
aprendi muito em relação ao traço que ilumina
a transparência do desenho
no conflito que existe entre a
superfície da morte e a profundidade da vida.

A grafite, a tinta-da-china observa os
seus segredos e experimenta o nenhum sentimento
ao descrever o plano interior das cartilagens
a pele do mundo sob o que nos move
ardentemente.


Jardim das Amoreiras, Relógio d'Água, Lisboa, 2003.

domingo, 20 de junho de 2010

PEDRO MEXIA

SE EU PUDESSE


Se eu pudesse
ter-te em vez dos versos,
ou ter um verso
em vez de ti,
ou ter os olhos
como os de um gato
para perscrutar a noite
onde isso se decide.


Avalanche, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2001.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

PAULO TAVARES

MINIMAL EXISTENCIAL


Quando morrermos,
não haverá divisões, nem fronteiras, nem estatutos.
Haverá, quando muito, um nome.

[tu sabias, querida Emily,
tu sabias quando disseste
«forever – is composed of nows –»]

Haverá valas comuns, túmulos
opulentos, gente que chorará a partida
de alguns, ignorando a vida de outros.

Quando eu morrer,
enterrem o caixão longe do meu corpo.


Minimal existencial, Artefacto, Lisboa, 2010.

domingo, 13 de junho de 2010

MARGARIDA FERRA

ÁLBUM


Dobro a roupa
em monte
os doze meses inteiros,
e tento juntar, incapaz,
duas peças com sentido.
As que ficam,
isoladas
sem uso provável,
escondo-as dentro de páginas brancas:
entre cada uma
papel vegetal quase transparente
e cantos antigos de colar fotografias.

Em dez anos encontro
um herbário inesperado:
folhas perenes e secas,
as meias cerzidas, únicas,
são exemplos raros destes dias
quase extintos.


Curso Intensivo de Jardinagem, & etc, Lisboa, 2010.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

domingo, 6 de junho de 2010

PEDRO TAMEN

[VEJO-ME NO BRILHO QUE TE DOU]


Vejo-me no brilho que te dou,
ó espelho das minhas mãos,
fugaz vitória destes dias
últimos.


O Livro do Sapateiro, Dom Quixote, Lisboa, 2010.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

JOSÉ MIGUEL SILVA

PART-TIME

Fifteen minutes with you I wouldn't say no.
The Smiths

Durante muitos anos trabalhei em part-time
na Livraria Bakunine, ao Carregal.
Não foram os anos mais felizes da minha vida,
pois o amor, o ranço, a solidão, a verdade
é que ficava muitas horas encostado à montra
a ver se tu entravas perguntando se eu tinha
segredos, sebes, aluviões ou a ignorância
da morte. Dir-te-ia que sim. Mas tu,
Gata Borralheira, só querias saber de astrologia,
de puericultura, de pronto a vestir para o outono
da alma. Raios te partam, rapariga,
como podia eu amar-te, tão estúpida eras.


Periférica, n.º 3, Vila Pouca de Aguiar, 2002.