domingo, 29 de agosto de 2010

JOSÉ CARLOS SOARES

[SURPREENDI-O VIVO]


Surpreendi-o vivo
num cemitério de esperas. Bebia
o sangue das horas

enquanto a memória desenhava
ventos passeando
pelos cantos da boca.


Telhados de Vidro, n.º 5, Averno, Lisboa, 2005.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

FERNANDO ECHEVARRÍA

RECOLHEM, GLORIOSAS, AS TRAINEIRAS


Recolhem, gloriosas, as traineiras.
Deslizam na manhã do Cabedelo,
esquecido o estrondo das procelas
que arrepanhou o assento
das águas. E das quilhas. Da certeza
dos músculos que rompem nevoeiro
e o enrodilham com a voz espessa
do cigarro molhado pelo vento.
Agora o sol rompe na barra. Estreia
a bruma a desprender-se dos pinheiros
e a tepidez sem fim da primavera
colhendo sinos pontuados de ecos.
E surde, limpa, a solidão da aldeia.
Com os filhos de luz e, mesmo, os netos
a esquecer a algazarra, a brincadeira
nas mãos calosas, no silêncio aberto
de olhos sorrindo à pequenina festa
que se chega, sorrindo, ao sal dos dedos.


Lugar de Estudo, Edições Afrontamento, Porto, 2009.

domingo, 22 de agosto de 2010

ALBANO MARTINS

ENTARDECER NA PRAIA DA LUZ


Espreguiçados, os ramos
das palmeiras filtram
a luz que sobra
do dia. É já noite
nas folhas. O branco
das paredes recolhe
o sangue e o vinho
das buganvílias
e hibiscos. Bebe-os
de um trago: saberás
que, mais do que cegueira, a noite
é uma embriaguez perfeita.


Castália e Outros Poemas, Campo das Letras, Porto, 2001.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

ALBERTO PIMENTA

ESTIMADOS COMPATRIOTAS:


Acerca do filho-da-puta, como acerca de muitas outras coisas, correm neste país as mais variadas lendas. Há até quem seja de opinião de que o filho-da-puta a bem-dizer nunca existiu, dado que ele é apenas um modo de mal-dizer. Nada, porém, mais falso. É certo que o filho-da-puta às vezes não passa de um modo de dizer, mas não bastará a simples existência, particular e pública, de tão variados retratos seus, para arrumar com as dúvidas acerca da sua existência real? Pois quem teria imaginação suficiente para inventar tantas e tais variedades de filho-da-puta, caso ele não existisse? Não! O filho-da-puta existe. Em todos os lugares, excepto no dicionário. No dicionário existem variados filhos, entre eles o filho-família, o filhastro e o filhote, mas não existe o filho-da-puta. Em compensação, o filho-da-puta existe em todos os outros lugares. Claro que há lugares que ele de preferência ocupa e onde por conseguinte é mais frequente encontrá-lo; no entanto, exceptuando, como ficou dito, o dicionário, não há lugar onde, procurando bem, não se encontre pelo menos um filho-da-puta.


Discurso Sobre o Filho-da-Puta (6.ª edição), 7 Nós, Porto, 2010.

domingo, 15 de agosto de 2010

JOSÉ MIGUEL SILVA

A BARREIRA INVISÍVEL – TERRENCE MALLICK


É difícil caminhar sobre uma linha invisível,
uma linha de água, entre o mal e o mal.
Divididos pelo sangue que atravessa os pensamentos,
do inferno ao paraíso, com o medo entrelaçado
na memória, os bolsos pesarosos de metal ferroso,
caminha sobre as águas quem caminha sobre si.
Por isso é tão difícil caminhar sobre as águas.


Periférica, n.º 4, Vila Pouca de Aguiar, 2003.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

MANUEL FILIPE

NUA MADRUGADA


O leito em seu estado adormecido,
o lume que esmorece na lareira,
a cadeira no seu estado de sentada,
a laranja que definha na fruteira,
ou a dolência deste estado indefinido
de sonhar, com o passado à cabeceira...

(E enquanto morre a nua madrugada
renasce a imensa noite, à minha beira.)


Eis uma Casa, edição do Autor, Lisboa, 2010.

domingo, 8 de agosto de 2010

MIGUEL CARDOSO

[É PORVENTURA IMPOSSÍVEL]


É porventura impossível
apercebermo-nos disto muito claramente.
Há outras maneiras, mesmo no rumor
com que os gestos se adiantam ao saber.
Assim se abranda um pouco a cegueira dos dias.
Porque apesar de tudo.
Experimenta chocalhar
o ouvido como se cavasses trincheiras
entre as notas, antecipa as incontinuidades,
cuida da imprecisão
como se fosse a mais exacta ciência.
Algures entre o torcer da língua
e o derrapar dos pés.
Afinar esta dança não é a menor das nossas tarefas.
Estou certo que já alguém o disse
(mesmo que o não soubesse):
Não conheço violência mais delicada
ou delicadeza mais bruta.


Que se Diga que Vi como a Faca Corta, Mariposa Azual, Lisboa, 2010.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

JORGE GOMES MIRANDA

2.


No bar da estação de serviço
apenas sandes de véspera e refrigerantes
em lata, quando perguntei.
Escolheste uma mesa dos fundos,
onde a conversa fluiria sem olhares predadores.
Abandonaras Matemática havia dois anos,
a meio do curso, para viajar à boleia pela Europa.
Sem pai nem mãe por perto,
um espírito romântico presidia a todos os teus actos.
O tempo, orgulhoso canibal,
confirmaria o que ninguém ainda te ensinara:
mapas, estrelas, horários, viagens
são outro modo de dividir a solidão
por muitos lugares, o amor fortuito
uma subtracção dourada.


Postos de Escuta, Editorial Presença, Lisboa, 2003.

domingo, 1 de agosto de 2010

RUI PEDRO GONÇALVES

[ATALHEI A NOITE]


Atalhei a noite,
Tentei chegar ao trilho mais certo dos teus passos
Caminhando no cerejal.
A velha casa era agora um borrão no crepúsculo,
Lembrava-me a fúria das crianças em louca correria.

Percorri, às apalpadelas, o quarto escuro, produzido pela idade
E foi aí que pedi a Purviance um copo de água.
Ela adiantara um torrão de açúcar para que a memória
Não fosse um frango fugido do galinheiro.

Alimentara-me de tudo isso, e nem o teu corpo encontrara
Para que a aventura fosse mais doce,
Mais secreta de certezas.
Sentira-me envergonhado por ser surpreendido
Quando te procurara
Tacteando uma imagem para ti.

Olhei pela janela.
Vi os ciganos em viagem em direcção ao sul.
Não sei se ias.
Não sei.

Eu fui.


Nitratos do Chile, Língua Morta, Lisboa, 2010.