domingo, 30 de novembro de 2008

VÍTOR NOGUEIRA

MUSAS


Apolo, chamemos-lhe assim,
é caixeiro-viajante «por acaso», mas
quer tirar enfermagem. Diz que escreve poesia
— está visto, pode acontecer a qualquer um.
Em cima do escadote, o farol do comércio tradicional
organiza a prateleira das águas-de-colónia.
Tudo lhe parece um pouco excessivo.

Apolo insiste numa espécie de sermão
de Santo António aos desodorizantes:
alexandrinos e decassílabos,
arquitecturas de grande entusiasmo,
a nossa relação com a História,
seres iluminados que alcançam o Nirvana.

Mas, de novo, as leis do «acaso»
desempenham um papel importante:
pede-se ao dono do Fiat branco que o afaste,
ou será rebocado. Aí vai ele, o viajante.
De algum modo, a poesia é difícil para todos.
Basicamente, não fazemos a menor ideia
do que se passa no mundo.


Comércio tradicional, Averno, Lisboa, 2008.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

RUI PIRES CABRAL

SHIRLEY ANN EALES


Na vitrina lê-se Livros Raros
e Usados sob o azul inclinado
de um toldo – mesmo em frente
à glacial cafetaria de franchise
onde o dia destrata o desejo
e não se pode fumar. Subo
aos pequenos gabinetes
mergulhados no doce bafio
da literatura e percorro de A
a Z as espinhas estreitas

e rachadas da poesia. É o sítio
mais vazio de Novembro
e o que mais me reconforta;
o livro que escolho, por metade
de uma libra, traz no frontispício
um nome e uma morada: Shirley Ann
Eales, de Scottsville – um sumido
autógrafo de maiúsculas magras
e triangulares onde a imaginação
encontra por enquanto pretexto

e oxigénio suficientes para arder.
O livro teve outra existência,
pertenceu a outra casa, a outra mesa
de cabeceira – e o pensamento,
de tão óbvio, conjura de repente
uma vertigem, é um corredor
abrupto para a imensidão do mundo
onde trafica o acaso. Ah, sabemos
que a vida é improvável se damos
por nós a cismar, a meio de uma tarde

insípida, numa mulher desconhecida
que lia poemas em Scottsville, nos anos
70. Mas haverá aqui alguma espécie
de sentido, algum sinal guardado
para alguém mais sábio ou inocente
do que eu? Não sei quem és
nem onde estás agora, Shirley Ann,
mas como seria belo se pudesses
um dia encontrar, por obra da mesma
sorte, o teu nome nestes versos.


Longe da aldeia, Averno, Lisboa, 2005.

domingo, 23 de novembro de 2008

JOSÉ MIGUEL SILVA

TREVAS

Para o Manuel de Freitas

E o pior é que chamamos liberdade
a um tapete que, rolante, já não ouve
a opinião dos nossos pés; que nos leva
para onde e anuímos, alheados,
aos mecânicos desígnios do terror.

Respiramos cadeados, consumimos injustiça,
damos duas várias voltas ao risonho torniquete
que nos serve de chapéu; trocamos a cabeça
por um prato de aspirinas. Os clássicos da vida
sem tristeza nem remorso (Cinderela,

Varadero, off-shore) iluminam o cenário
em que dormimos, inocentes como balas
e nem sei como não somos mais felizes.
As rémoras, os ogres, os deuses mais bonitos,
velam nossa carne como grifos educados.

O tratado das sementes, o saber do lenhador,
queremos lá saber de quem é pobre como nós.
Confiados ao acaso, disputamos amuletos,
reforçamos sob os pés a solidez do desacerto,
colocamos outra pedra no sapato.

Para o centro do inferno dirigimos
este filho, o filho deste carro,
cativados pelo direito conquistado
de entregar os nossos dias, como rezes,
ao cutelo de despachos infiéis.

Neste cerco, viver é uma questão
de prorrogar o desalento, de iludir
o infortúnio: cerramos uma porta suicida,
desatamos a gravata, ficamos satisfeitos
quando o gelo, na bebida, é de boa qualidade.

Se olhamos para o chão desaparece
o horizonte; se olhamos para o céu
ficamos sós. Não percebo como rimos
quando pedem que posemos para a foto
de família. Alguém nos enganamos.

Confundidos pelo surto de mentira,
leiloados pela última hipnose,
enxertados no pedúnculo da morte,
semi-envergonhados, de sorriso padecido,
dizei-me se este rosto de cartão amarrotado,

se esta alma como um campo pedregoso,
se estes pés adaptados ao espinho,
se isto que nós vemos é um homem.


Ulisses já não mora aqui, & etc, Lisboa, 2002.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA

POLÍTICA


É um poeta sério,
que escreve versos sérios,
foi o que me disseram,

árduos, saudáveis,
que se podem repetir
antes de almoço

e depois da eucaristia,
em que a realidade,
essa puta velha,

não é menos resistente
que ele e outros,
que dão o corpo ao manifesto
e confirmam, sem caução,

que a solidão é paciente
e o desejo anónimo
– as manhas do canastro

cabem todas em qualquer
cama ou no verso
e meio que ainda falta.


Mais Tarde, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003.

domingo, 16 de novembro de 2008

JOSÉ RICARDO NUNES

INCÊNDIO DE ANO NOVO


Mais do que terra, momentos
houve em que quis deitar para a fornalha
o coração e as outras coisas todas
para as quais não encontro nomes rigorosos.


Novas Razões, Gótica, Lisboa, 2002.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES

FOGO, FELPA, FARMACOPEIA


A noite ficou branca uma vez mais.
Nesse luar vazio floresce a rocha,
a silva, o contorno do que nada acolhe.
Subo para a armação de ferro
e fungos e vírus e bactérias
esperam no pousio alagado,
relíquias celestiais, a natureza.
Tiro uma a uma cada roupa
na voltagem do frio, mudo o que fui
por detrás da noite, no pesadelo.

Esmago as folhas da hortelã-brava,
um odor carnívoro que se mistura
à bruma roída dos barcos na lagoa.
Tudo arde nas toalhas que nos limpam,
o sândalo deitado nos lençóis,
a linfa da estopa escura contra a luz.
Cor de açafroa, esse cardo cuja veste
depois de morta é, como nos surge a noite,
macerada.

O arbusto aberto no muro, o varandim
e o trago da chama, o teu retrato. Uma espora
no cerro do penhasco. Dessas coisas
que se perdem antes de lhes tocarmos.
O luar cai além do vidro, no desaire,
no alto morro preto onde este cansaço
por vezes é o deus

O feixe sombrio lança sobre socalcos
outros socalcos mais escuros, no tecto
de madeira ameaçada, a caminho do saguão,
direito ao que fica por dizer.
Quando atravessa o farol da alvenaria
ilumina-o para dentro, essa parte
partida da revolta de que somos o resto
calcinado, sem fundura, um volume
trazido pela escuridão à despedida
e que não cessa de louvar
nessa alegria lacerada.

É melhor que no outro quarto o corpo,
o meu, o deles, a gruta abafada
da parede sem reboco final,
acenda a noite com suores cobertos
pela lâmpada diminuta.
Que no outro quarto eu esqueça
a languidez suicida, o halo de passos
junto de um sabor, o conforto da derrota
que nos avisa com o longe, o seu esquife,
o bacelo translúcido despedaçado
e a viagem do sono, sem mais querer voltar.

Irão faltar-te as cartas que eu deixava
para tu pores os selos. Meu deus,
que mal faz a morte ao outro a quem
nos tira. Depois de nenhum mal nos fazer já
a nós.

Sempre que falo de noites assim
é o Douro visto da galeria. É Ariz. A minha avó
deu-me depois esta cadeira. Só lhe mudei
a lona. Apenas mudei eu. O pano cru
com a amarga simplicidade de tudo.
Cedro a cedro, a violência do que vai
diante de nós, dentro de mim.
Numa selha de zinco davam-me banho
e cantavam para eu não chorar,
é lá possível não chorar.


Alta Noite em Alta Fraga, Relógio d'Água, Lisboa, 2001.

domingo, 9 de novembro de 2008

CARLOS ALBERTO MACHADO

[HOJE VOU PARA O MERCADO VELHO EXPOR O MEU CORPO...]


Hoje vou para o mercado velho expor o meu corpo em pedaços
cada um bem identificado por uma etiqueta com nome e valor
tenho esperança de realizar uma boa transacção há tanta coisa lá
para trocar pelos pedaços ainda em bom estado deste meu corpo
inteiro não tem muita utilidade mas assim a retalho é precioso
em particular a mão direita o crânio o sexo o coração
oxalá ninguém queira comprar por atacado todos os pedaços
é que não sei onde guardei as instruções de montagem.


Talismã, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

JOÃO ALMEIDA

ANTÓNIO


Sob a ponte da auto-estrada
no fundo de um carreiro de formigas
três casas de madeira rápida

é um sítio lento e impuro onde peixes amarelos
cintilam. Crescem fetos na barriga das mulheres
um violador tímido
vinho
um doido arreganhado com olhos parados lá dentro

o António não está e olha para o chão
tem 17 anos e nunca lavou os dentes.
A assistente social pergunta ao guardador de peixes
por que é que o António tem faltado à escola. O barulho
dos carros é faz de conta uma cascata. Que não
sabe, está mal da barriga diz o doido sem sabedoria.

Lesmas pretas com os olhos pequenos pontos brancos
escondidos
brilham como brilha a alegria.


O Mal dos Postes de Alta Tensão, Black Sun Editores, Lisboa, 2000.