domingo, 30 de julho de 2017

RUI NUNES

[LAMPEDUSA]


Não se regressa aos mortos:
eles expulsam-nos de qualquer regresso.
Sôfregos da sua morte, flutuam
com o abandono de detritos:
em volta respira a água.
Expectante.

Barcos por entre
o arquipélago instável dos corpos
perdidos numa névoa que cheira a gasolina:
o som dos motores redesenha
o mapa dos naufrágios,
a geometria dos afogados.

[...]


Lampedusa, Paralelo W, Lisboa, 2017.

domingo, 16 de julho de 2017

JOSÉ MIGUEL SILVA

MÚSICA ANTOLÓGICA & TODOS CONTENTES


Bom é gostar daquilo que os amigos escrevem
e não ter de mentir na volta do correio.
Não há felicidade mais em conta nos tempos
que correm. Somos gratos a quem nos elucida
sobre a queda do cabelo ou a fraqueza da razão,
quem nos lembra que ainda temos tempo
de morrer acompanhados. E, só por esta vez,
esquecemos todo o nojo que sentimos
de nós próprios, escolhemos a camisa mais
lavada, escovamos o sorriso, e recebe-nos a rua
— quem diria! — com um beijo em cada face.


Últimos poemas, Averno, Lisboa, 2017.

sábado, 15 de julho de 2017

NUNES DA ROCHA

[HÁ MUITO TEMPO DA JANELA]


Há muito tempo da janela
A olhar o zodíaco
E o chuvisco sobre barco em doca seca.
Ofereço a Júpiter álcool sem retorno,
A Vénus rugas recém-chegadas
E a Marte tudo o que nunca fiz,
Por preguiça
Ou revolução inacabada.

Com língua balaustrada
Talvez o céu fosse estrada
Ou verso a verso no caminho
Para ti.
Mas queimei todos os livros,
Cobri os cabelos com a cinza
E nunca mais, lepra inútil,
Ceguei pelo feitiço da sibila.


Poemas obsoletos de um bicho imóvel, Averno, Lisboa, 2017.