quarta-feira, 28 de abril de 2010

NUNO JÚDICE

A TERRA DO NUNCA


Se eu fosse para a terra do nunca,
teria tudo o que quisesse numa cama de nada:

os sonhos que ninguém teve quando
o sol se punha de manhã;

a rapariga que cantava num canteiro
de flores vivas;

a água que sabia a vinho na boca
de todos os bêbedos.

Iria de bicicleta sem ter de pedalar,
numa estrada de nuvens.

E quando chegasse ao céu pisaria
as estrelas caídas num chão de nebulosas.

A terra do nunca é onde nunca
chegaria se eu fosse para a terra do nunca.

E é por isso que a apanho do chão,
e a meto em sacos de terra do nunca.

Um dia, quando alguém me pedir a terra do nunca,
despejarei todos os sacos à sua porta.

E a rapariga que cantava sairá da terra
com um canteiro de flores vivas.

E os bêbedos encherão os copos
com a água que sabia a vinho.

Na terra do nunca, com o sol a pôr-se
quando nasce o dia.


Poemas [de As Coisas Mais Simples], Leya, Lisboa, 2009.

domingo, 25 de abril de 2010

PAULO DA COSTA DOMINGOS

[QUE É FEITO DOS NOSSOS CONTEMPORÂNEOS? PARTIRAM]


Que é feito dos nossos contemporâneos? Partiram
alguns, para o deserto, à procura
de emprego, à procura de dinheiro; outros
receberam no peito, braços abertos,
um deserto que lhes nutre a sujeição,
o cadáver adiado. A muito poucos
bastou um vinho, a música, o jogo dos enlaces,
a notabilíssima fala dos corpos! E a Arte
estes colocou na estrada larga do instinto,
o verbo agir-livre, donde claramente
se vê o subúrbio mental do homem nado-morto,
da mulher inerte.


A Escrita, & etc, Lisboa, 2010.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

LUÍS FILIPE PARRADO

NA ASSEICEIRA, LENDO SOBRE A VIDA E A OBRA DE PAUL GAUGUIN


A luz de fim de Agosto declina sobre
o terraço desta casa na província
onde leio que

o pintor Paul Gauguin
se esquivou às obrigações familiares
abandonando mulher e filhos

para poder viajar pelos Mares do Sul
e «perseguir a sua arte».
Por ter lido agora estas palavras

ergo os olhos da página 57
e vejo à minha frente
o bando de corvos poisado

nos grossos cabos eléctricos,
a planura do céu, o campo de milho
mais extenso das redondezas

onde se escondem os meus filhos
um do outro, e os dois de mim.
Para Gauguin, regressando à leitura,

o apelo da criação,
o amor profundo pela pintura
falaram mais alto do que a prosa

da existência pequeno-burguesa
da segunda metade de Oitocentos
motivo que o conduziu à rejeição

«dos deveres convencionais
para com a família»,
definitivamente deixada para trás.

Mas, mesmo sublinhando frases claras,
não se torna evidente para mim
se o pintor fez o «que sentiu

que tinha que fazer para atingir
o seu mais alto grau de excelência pessoal»
e, deste modo, legar aos homens

«o fruto da sua arte»
(como argumentam Shai Biderman
& Eliana Jacobowitz)

ou se, mais exasperadamente
do que possa parecer,
a pintura foi a tábua de salvação,

o último recurso para a fuga
ao pântano (outros dirão ao inferno)
da vida conjugal, em Copenhaga,

com Mette Sophie Gad e as 5 crianças.
Quanto a mim,
gostaria de desfazer a dúvida

e prosseguir a leitura,
no entanto, na província,
o sol de fim de Agosto dissolve-se

por detrás do telhado da casa
e a noite vai estendendo uma frescura ventosa
que torna praticamente impossível

o acto de ler.
Quase às escuras
restam-me, pois, os gritos dos filhos,

algures,
e a voz da minha mulher a dizer
que é preciso pôr a mesa para o jantar.

Por isso,
porque não estamos no Taiti
nem no século XIX

nem eu sou o famoso pintor primitivo
moderno Paul Gauguin,
marco a página, fecho o livro

e levanto-me
para tratar dos pratos e talheres.
O poema, desculpem, tem que ficar por aqui.


Resumo: A Poesia em 2009 [de Criatura, n.º3], Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

domingo, 18 de abril de 2010

RUI PIRES CABRAL

«NÃO TENHAS CONFIANÇA NA TUA JUVENTUDE.»

para o Manuel de Freitas

Noites de tabaco com resina
de Marrocos, pequenos quartos

onde a música era enorme.
As ruas pulsavam, eram coisas

mortais, o pensamento um carrossel
de monstros vivos. E nós os únicos,

os mais sós, os mais relapsos
no caminho que descia do devaneio

à angústia. Esquecidos das horas
num qualquer degrau perdido,

o futuro era aterrador: it will end
in tears. E tudo o que sabíamos

estava errado, menos isso.


Resumo: A poesia em 2009 [de Oráculos de cabeceira], Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

ADELINO ÍNSUA

[A AVE CATIVA NAS MÃOS DO VENTO]


A ave cativa nas mãos do vento
aquieta-se para poder voar.
São asas luminosas as quietações
e não agindo sobem.

Neste mundo redondo é o caminho do raio
a sentença consciente da sua fulminante respiração.
E não é livre o caminho do raio.


Livro das Esmolas, Opera Omnia, Guimarães, 2008.

domingo, 11 de abril de 2010

MARTA CHAVES

[EXERÇO MUITAS VEZES O OFÍCIO DE ESTRANGEIRA]


Exerço muitas vezes o ofício de estrangeira,
com pouca fé de que na impossibilidade da língua
se entenda a natureza dos meus gestos.


Onde não estou, tu não existes, 2.ª edição, Tea For One, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

JAIME ROCHA

[HÁ NO CÉU UM CHORO QUE SOBE COM AS PLANTAÇÕES]


Há no céu um choro que sobe com as plantações.
E um odor vazio parecido com o barro.
O homem queima o peito quando atravessa
uma placa de zinco. A sua sombra aparece
depois no meio de um olival. Os dias são como
os abutres, calados, virados para sul. Tudo fica
envolto numa crença assim que o pássaro consegue
saltar pelo espelho sem que as suas vísceras se
esmaguem. Só o silêncio acorda o homem
e o desperta para o mal.


Do Extermínio, Relógio d'Água, Lisboa, 2003.

domingo, 4 de abril de 2010

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

TRIESTE


Nesse verão nenhum de nós buscava terra firme
parecia-nos caminhar há séculos sobre as águas
Donde viemos nós? Como chegámos a esta luz
austríaca sobre as colinas
ao fumo lento no anfiteatro do golfo
à ordem aleatória do tempo?

Talvez nos caiba viver por cidades estranhas
em casas que esconderão sempre o seu medo
e a sua glória
sós diante dos céus
sem a certeza culminante

Vemos a tarde perder-se na direcção do molhe
o mundo é aquilo que nos separa do mundo


Resumo: A Poesia em 2009 [de O Viajante sem Sono], Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.