quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

RUI PIRES CABRAL

CIDADE DOS DESAPARECIDOS


Muitas vezes não amei Lisboa,
não soube amá-la ao anoitecer
dos dias úteis, quando era gasta,
parada e suja, e nos autocarros
quase vazios viajava de luz acesa
a entranhada tristeza do mundo
que foi a minha primeira e mais
precoce intuição. Grande cidade
dos desaparecidos, eu não tive
tantas vezes a saúde de gostar
dos teus pequenos jardins
abandonados. Quando nos cafés
já iam desligando as máquinas
e do outro lado da linha ninguém
voltava jamais a responder
como eu queria, quantas vezes
não pude achar o sítio e o sossego
para esquecer e dormir? Mesmo assim,
eu não te fiz justiça, Lisboa, quando
me deixei de ti: eu não era exemplo,
eu sempre estranhei um pouco a cama
da vida.


Em Lisboa, sobre o mar: Poesia 2001-2010 [de Longe da aldeia], org. de Ana Isabel Queiroz, Luís Maia Varela e Maria Luísa Costa, Fabula Urbis, Lisboa, 2013.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

JORGE ROQUE

A CELA


O problema não são apenas os senhores da escravatura. O problema é que os escravos se reconhecem como tal. Os senhores talvez se pudessem derrotar. Mas como vencer os muros de quem ignora a liberdade e dentro de si ergue a cela que o encerra?


Cão Celeste, n.º 4, Lisboa, 2013.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

MIGUEL-MANSO

BALADA DA RUA DAMASCENO MONTEIRO


ardia de amor pela casa
numa confusão de silêncios ou
dizendo de outro modo

afundava-se numa líquida recordação cardíaca

ocultos pólen pólvora fósforos
a má reputação dos dedos
paixão cartografada remota
toponímia de enganos

braço a braço crescia alto
o incêndio no interior do peito
deliberado ritual de lâminas e pele
a transparente certeza
da cicatriz

mas ardia de amor pela casa soturna
silêncio dando para o saguão luz muitíssimo
extinta por sobre a larga extensão destruída

morrer, principalmente de amor, é
uma compendiosa tarefa doméstica

dentro do coração antigo
serei breve


Em Lisboa, sobre o mar: Poesia 2001-2010 [de Contra a manhã burra], org. de Ana Isabel Queiroz, Luís Maia Varela e Maria Luísa Costa, Fabula Urbis, Lisboa, 2013.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

INÊS DIAS

[PASSOU DEMASIADO TEMPO]

"When someone is dying
there is no point in telling him about the snow."

IRIS MURDOCH

Passou demasiado tempo
desde o último fim do mundo.
Os mecanismos quebraram-se
e sobram agora marés confusas,
países de fronteiras esmaecidas.

Visto de cima, o homem
é esta matéria mínima,
insecto negro de patas para o ar,
brincando a haver deuses
que o contemplem ainda.
(A noite toda no lavatório
branco da vida,
à espera que algo desça
e lhe devolva contornos,
uma escala compreensível.)

Mas os deuses despiram Orfeu
da sua curiosidade,
dobraram sombra sobre
sombra numa cadeira
antes de fecharem a conta.

Ao fotógrafo, deixaram
apenas um travo amargo
em jeito de temperatura.


Tempos vários, Paralelo W, Lisboa, 2014.