quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

MANUEL DE FREITAS

II


Lá em baixo, como é também
sabido (embora de alguns apenas),
fica a taberna da Dona Benilde.
Central da Praça das Flores,
se preferirem. Onde não encontrarão
uma coelha morta, os dedos sujos
de tabaco do senhor Jorge
ou o rasto ainda mais sujo da felicidade.
Mas podem facilmente encontrar-me,
junto ao relógio parado que fixei
a tarde inteira – enquanto o 100, coitado,
subia e descia o mais improvável dos destinos.

Razão tem sempre Benilde, ao dizer
por exemplo que «acredita mais em coisas
más do que em coisas boas».


Vai e vem, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

RENATA CORREIA BOTELHO

[COMO ESTA CASA QUERO]


Como esta casa quero
abeirar-me da morte,

e assim fechar o corpo
no tempo de uma ave
cansada de sombras

fria, à espera
da fúria de deus.

Envelhecer escura
como esta casa,
cheia de fantasmas dentro

roseiras bravas
trepando ventanias

e um poço no sítio
difícil do coração.


Esta casa (com Emanuel Jorge Botelho, Inês Dias e Manuel de Freitas), Averno, Lisboa, 2013.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

RUI CARDOSO MARTINS

NOSSO DE CADA


No trigo do meu avô
estive na floresta do pão
se o fogo vier agora
morrerei como um ratinho.
Na rua do forno da terra
um homem esperava na cama
vai morrer já morreu
o tio Zé Benigno
minha mãe que é de fora
aos lenços perguntou
e já lhe deram uma sopa?
o forno não arrefece
e o homem viveu mais dez anos.
Na seara da colina
o espantalho de centeio
assustava as negras gralhas
vestirá as calças do meu tio
o que matou o cigano
que o ataca com a navalha.
O pão é o rei dos alimentos.
Mas em Chelas o meu homem
do talho atirou migalhas
de hambúrguer aos pardais
ainda hoje se espanta
o que eles gostam de carne.


AA. VV., Este é o meu corpo, Tea For One, Lisboa, 2013.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

MIGUEL-MANSO

[PONHO PALAVRAS ONDE VOU MORRER]


ponho palavras onde vou morrer
e estremeço porque a vida se dissipa
como água derramada no soalho

entre muitas outras coisas escrever
é procurar nos confins

além tempo e sucessão de espaços
a demorada nomenclatura do efémero


Aqui podia viver gente, Primeiro Passo, Amadora, 2012.