quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

RUI CAEIRO

PORCOS – 1


Na minha terra os porcos engordam, engordam
mas são sempre mortos antes de rebentarem
que os alentejanos é tudo gente pacífica


O carnaval dos animais, Letra Livre, Lisboa, 2008.

domingo, 25 de janeiro de 2009

MIGUEL-MANSO

CAFÉ CASTRO


com cigarros dando para altos janelões
com garrafas soturnas canções vazias
medito em esquemas falhos de viabilidade
financeira – são um descanso estas imaginações
diletantes e portuguesas na recuada
cidade de Budapeste

permitem chegar apenas a este lugar isolado
ao plano B: texto que o autor não
burila no interior do café

mas proponho-lhe:
esqueça tudo isto os cartazes cubanos a empregada
curiosa e loira e avance para o poema seguinte
sem grandes remorsos

evitará demorar-se num desenho de nuvens
no tecto de um quarto (qual?)
festejar o fim de nenhuma vindima
aperceber-se do erro juvenil que é fechar um poema
com a palavra morte
sobretudo não lhe falarei de Walt Whitman
ou David Beckham

mas depois, peço-lhe
atrase-se outra vez suspenda por um momento a leitura
num desses gestos vazios: coçar a cabeça
coçar o queixo

espere que este autor recupere de novo terreno
e partamos os dois para baixo – haverá outro sítio? –
para o poema seguinte


Quando escreve descalça-se, Trama, Lisboa, 2008.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

CASTELO DO REI


Não passa de um retrato pintado por João
Baptista Ribeiro, nem sequer excelente, datado de
1828. Nesse ano os três estados do reino aclamam
Miguel, rei absoluto. Homenagem,
e também paixão, sobre o tempo inteiro
vencido. Sei de quem o visite e fique preso a uma
franja do tecido da camisa; parece papel transparente,
lágrima sobre a mão direita
que segura o ceptro. O nariz levemente aquilino,
suave castanho o olhar
e os lábios – pesaram todas as palavras no exílio
a enganosa derrota dos ritos, e da morte
quando se chega a um cais estrangeiro de mãos
vazias. No grande rumor da outra margem
ninguém sabe quem é dono do seu fogo

parou o rei debaixo de uma árvore
o sentido e o destino têm a cor da face honrada
os banqueiros, a usura, trazem as chaves
descarregam nos vestíbulos de pedra negra a infelicidade.


Castelos: I a XXXV, Averno, Lisboa, 2004.

domingo, 18 de janeiro de 2009

JOSÉ MIGUEL SILVA

QUATRO


Nesse tempo ainda as raparigas
não tinham sido inventadas.
Éramos só nós, o bando dos andróginos,
a correr atrás dos gatos.

Amoras e ameixas acenavam-nos
atrás de gradeados.
Quem mijava a cinco metros
empunhava o caduceu.
A ordem natural era seguida
com feroz habilidade.

Nenhum de nós sabia
o decálogo de cor. À força
e ao arrojo chamávamos humano.
Entrávamos em Tróia de joelhos
esfolados. E uma pedra, bem lançada,
valia um argumento.

O pior que nos podia acontecer
era sermos exilados, condenados
a brincar ao invisível
com a raça das escuras raparigas,
aprender a passajar o verso heróico.

Só mais tarde o gineceu saiu à rua;
trazendo laçarotes, mandamentos,
aromas esquisitos. Mas isso, já se sabe,
é outra história.


Vista para um pátio, Relógio d'Água, Lisboa, 2003.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

RUI PEDRO GONÇALVES

[NESSA NOITE FICÁMOS RETIDOS NA ESTRADA]


Nessa noite ficámos retidos na estrada.
Os seus documentos, por favor.
Sim. Pode seguir. É sempre em frente.

As luzes eram tantas.
Projectavam, lado a lado, o teu rosto e o meu.

Gostaria de me ter despedido desse céu,
Antes que morresses numa página,
Num quarto de hospital,
Ou noutro lugar qualquer
Onde pudéssemos, em contracurva, despistar o leitor.

Sim. Pode seguir.


Noites na Granja, edição do Autor, 2006.

domingo, 11 de janeiro de 2009

ALBERTO PIMENTA

[MAS QUE MEMÓRIA]


mas que memória
podemos ter
de nós?
e de qual tempo?

deste tempo exterior
em que
depois de criados
e decifrados
os consensuais alfabetos
da exploração
da vida
chegou o projecto Stardust
com material inalterado
desde o início
do sistema solar,
que não nos diz
se então já havia actos de amor
e portanto
não nos diz nada (?)

é preciso emparedar o demente
que propõe que podia haver
o que não há.
e outros
como ele.

acham-se todos
cada vez mais
perdidos
no meio do próprio ruído,
carregando
males
e mails
como se a diferença
entre ambos estes termos
não fosse
apenas o espaço
de uma ou outra letra,
e a ressonância
da voz do homem
que treme fora como a terra dentro.


Imitação de Ovídio, & etc, Lisboa, 2006.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

RUI PIRES CABRAL

LIVROS


O tempo cumpriu as promessas que nos fez
e o dia já não é corrigido pela música:
estas casas não terminam em nenhum jardim,
estão viradas de frente para o inverno, a nossa
direcção. Mas não deixa de ser estranho
reler agora os livros de que gostávamos, os livros
que não podíamos compreender ainda:
enchemos com eles as estantes do futuro,
para o dia em que não poderíamos suportá-los,
de tão próximos. A bela geometria das superfícies
não pode continuar a distrair-nos de tudo
o que nos atormenta: a vida é isto, esta imensa
e inútil espera, e os livros afinal
jamais nos ensinaram outra coisa.


Praças e quintais, Averno, Lisboa, 2003.

domingo, 4 de janeiro de 2009

MANUEL DE FREITAS

SÃO MARTINHO


Tenho atrás de mim um bar
e à frente um cemitério.
Assim (na opinião de uma amigo)
deveria terminar não apenas o postal
mas um poema que não escrevi.
Serviam, para acompanhar as cervejas,
batatas a murro tão frias como eu.

Talvez o postal bastasse, agora que
a igreja velha, onde o meu pai
aprendeu música, já só abre
para velórios — diariamente, portanto.

Calado, à minha frente, um cemitério
– e, apenas um pouco atrás,
canções que vêm morrer
junto ao balcão do bar

não sei por quanto tempo.


Boa Morte, edição do Autor, Lisboa, 2008.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

ARMANDO SILVA CARVALHO

[VIAJOU SEMPRE ENTRE NÓS O RISO AGUDO DOS CÍNICOS]


Viajou sempre entre nós o riso agudo dos cínicos.
Houve palácios de palavras no ar ao nível do volante
Ou então uma perna de seda, umas calças eróticas
Nas maiores noites de glória da mão que te controla a força.

E sempre esse mau ciúme do teu génio
Em baixo, numa segunda instância
Das mudanças do sexo.


O Amante Japonês, Assírio & Alvim, Lisboa, 2008.