segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

ALBERTO PIMENTA

[A MINHA NÃO É ESSA]

[...]

a minha não é essa
não sou empreendedor
nunca na minha vida empreendi
e quase não aprendi
e esse pouco desaprendi
e ainda me falta desaprender
vejo o que se vê
como lugar onde tudo se oculta
vejo o que se mostra
como lugar onde tudo se frustra
agora já é tempo
estou simplesmente à espera
derramei a minha história
que se passa dentro da tua
e a tua também
dentro da minha
é a história em que sei que estou
dura ainda o tempo
que ela quiser

[...]

Pensar depois no caminho, Edições do Saguão, Lisboa, 2018.

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

AFONSO CRUZ

[CREIO QUE O GUARDA-CHUVA]


Creio que o guarda-chuva é uma excelente invenção. Repare: não é um objecto que acabe com a chuva, é sim algo que evita a chuva individualmente. Não gosto dela, mas não acabo com ela, não a destruo. O guarda-chuva é uma filosofia que usamos no quotidiano. A água continua a cair nos campos, apenas evito que me estrague o penteado. É um objecto bondoso, que não magoa ninguém.


Flores, 2.ª edição, Companhia das Letras, Lisboa, 2017.

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

INÊS DIAS

MENINA CALÇANDO A MEIA
[ESTUFA-FRIA, 1966]


Não te mexas.

O futuro é perder o equilíbrio,
cair até bater no fundo
de uma insónia hora a hora
interrompida para respirar
à superfície da luz.

Não te mexas, ainda.

Não hesites, não assustes o sonho
pousado em teia sobre ti,
não agites as águas.
E talvez a vida se deixe
ficar à margem
com os seus dias armados de pedras.


Ponto-sombra (de Da Capo), Corsário-Satã, São Paulo, 2018.

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

SANDRO WILLIAM JUNQUEIRA

A DISTÂNCIA NÃO TEM SUFICIENTES QUILÓMETROS


Se o dia fabrica paisagens a noite concebe vazios.

A mil cento e vinte e três quilómetros de distância, a Sul, está tão escuro como ali. A segunda parte da noite. Deitada de costas, a Lua é magra. Já alcançou o centro da abóbada. As estrelas, distantes e indiferentes às vidas humanas, brilham a sua solidão perpétua. Mas, o que se decide ali, naquele instante, dentro daquela casa, influenciará pessoas e acontecimentos a mil cento e vinte e três quilómetros, a Sul.

A distância não tem suficientes quilómetros para se pôr a salvo, nem da noite nem da passada larga do destino.

[...]

No Céu não há limões, Caminho, Alfragide, 2014.

domingo, 9 de setembro de 2018

A. M. PIRES CABRAL

A MÁQUINA DE COSTURA HUSQVARNA


1.

Havia em casa uma máquina Husqvarna
e às vezes a Mãe sentava-se a ela
e costurava.

Curioso, a Mãe não conseguia
costurar calada. Isto é: tinha de cantar.
E cantava muito e bem. Dir-se-ia que
a costura exigia encenação
de que cantar era parte obrigatória.

Sentado ao pé dela, ficava fascinado
pelo picar obstinado da agulha sobre o pano
ao ritmo com que a Mãe impelia o pedal

— e o picar lembrava-me o afã das pombas
devorando em vaivém os grãos de milho
que meu Pai lhes atirava à porta da farmácia,
nos dias em que estava de maré.


2.

Chegou porém o dia em que as dores nas costas
impediram a Mãe de costurar (mas não de cantar).

Ora, a fábrica Husqvarna, avisadamente,
à boa maneira sueca,
previa o caso de as mães não poderem costurar
e o corpo da máquina estava preparado
para, quando removido do uso normal,
se dobrar sobre si e embutir.

(Lembrava então uma ave exausta
que recolhe a cabeça sob a asa e cisma.)

Mas, como foi feita para ser útil,
sempre servia de mesa numa precisão.

Nunca mais vi pombas a debicar grãos de milho
no picar diligente da agulha.


3.

Acho que ainda se fabricam coisas Husqvarna:
motocicletas, corta-relvas, moto-serras,
ferramentas prestimosas, praticáveis.

Mas aposto que nenhuma dessas coisas boas
tem mães a cantar nela nem sequer
lembra pombas a ninguém.


Trade Mark, Cotovia, Lisboa, 2018.

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

LUÍS AMARO

1923-2018


quinta-feira, 26 de julho de 2018

MANUEL RESENDE

VOLTAR PARA CASA


Mas porque tem a pessoa de voltar para casa
E seguir o rasto das árvores no chão,
Pelo caminho conhecido, com o coração mirrado nas mãos
E as mãos nos bolsos como um apontamento antigo?
Não haverá outra história para viver, um jornal para cada um,
E súbita a esperança a queimar os lábios, a palpitar na boca,
Pronta a saltar e a arder todo o corpo?
Mas porque tem a pessoa de voltar para casa,
Cabisbaixa?


Poesia reunida [de Em qualquer lugar], Cotovia, Lisboa, 2018.

domingo, 15 de julho de 2018

ANTÓNIO BARAHONA

E, A PROPÓSITO DE VIAGENS


E, a propósito de viagens, recordo um serão em Sawa-Sawa (Moçambique): depois de longa caminhada pelo mato, eu deitara-me na esteira, exausto, ao lado do meu Shaykh que, à luz duma lamparina fumegante, derretia rapé sob a língua e murmurava uma oração.
Emudeceu, de súbito, satisfeito com o som do que dissera. E eu adormeci.
Acordei passados poucos minutos, com a sua voz a asseverar-me num tom deveras afirmativo:
— Só os homens que viajaram muito e correram mundo podem ser assim tão amigos e íntimos, como nós somos!
Eu nem sequer achava que tivesse viajado muito e comecei a imaginar que, com certeza, ele teria viajado muito mais.
E perguntei-lhe, curioso, após narrar-lhe as minhas vagamundagens:
— E o meu Pai, até onde foi?
— Quem? Eu? — retorquiu o meu Shaykh, surpreso. — Eu nunca saí desta aldeia!


Aos pés do Mestre, Averno, Lisboa, 2018.

domingo, 8 de julho de 2018

JORGE ROQUE

ESTUDOS LITERÁRIOS


Quando morrer vou deixar vários pares de sapatos novos, arrumados nas caixas, absolutamente por usar. Não será difícil encontrar tamanho de pé para o meu número, é aliás dos mais vulgares. Mas haverá outro problema: os sapatos são todos iguais, três ou quatro pares do mesmo modelo, variando quando muito a cor do cabedal e atacadores. Perfil neurótico, obsessivo, compulsivo, sei lá que mais o compêndio tem para mim reservado. E no entanto, bem mais simples, a razão era a dificuldade de encontrar sapatos que não me apertassem os pés.


Cão Celeste, n.º 12, Lisboa, 2018.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

ISABEL NOGUEIRA

[RECORDAMOS UMA PESSOA]

[...]

Recordamos uma pessoa enquanto recordamos a sua voz.
Com o tempo tornamo-nos menos ambiciosos. Uma expressão serve.


Marginal, Não Edições, Lisboa, 2018.


quarta-feira, 6 de junho de 2018

ALBANO MARTINS

1930-2018


quarta-feira, 9 de maio de 2018

MANUEL DE FREITAS

DEDICATÓRIAS


Arrependo-me de pelo menos um terço das que fiz; outras permanecem, resistem duramente à passagem dos anos. Mas uma dedicatória é tão indelével como um abraço. Durante algum tempo, foi verdade. Escamoteá-la seria uma traição.

Prefiro apagar poemas, ou até um livro inteiro, a rasurar um nome.


Shots, Paralelo W, Lisboa, 2018.

domingo, 29 de abril de 2018

TIAGO ARAÚJO

SMASHED TO PIECES (IN THE STILL OF THE NIGHT)


no café kafka ainda é permitido o tabaco,
mas fumo apenas passivamente,
como tenho feito toda a vida.
há duas horas que espero por mim
frente a uma chávena de chá preto que começa
a perder o calor e a marca das duas mãos
que a seguraram antes. quase sem aviso,
um corpo foi substituído por outro corpo,
um pouco mais velho e lento.
entrei no café de cadeiras vermelhas, mas não voltei a sair.
terás de viver agora, mais uma vez, com a pessoa diferente
que de forma periódica vai herdando o meu nome
e os meus medos, pouco mais.
a transformação adicional coincidiu com a mudança para esta
cidade onde uma antiga torre defensiva de betão
anuncia que algo se estilhaçou no
silêncio da noite. não tenho a certeza, mas julgo que
terá sido a juventude.


Ano zero, Averno, Lisboa, 2018.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

FÁTIMA MALDONADO

SOBRE UM DUELO


Incúrias cravam ferros
no pálio da velhice.
O novilho da morte
tenta escapar ao laço
deambula na sala
à esquiva do amor
furta-se à ferra do desejo
torsos reflectem
a luz das velas
esverdinha a pele
água salobra
marcham camelos
na espinha bífida.
O ventre flecte
enquanto a lua assiste.


Às escuras (com José Amaro Dionísio, Helder Moura Pereira e Fernando Cabral Martins), 100 Cabeças, Lisboa, 2016.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

FÁBIO NEVES MARCELINO

[NUNCA FUI SENÃO UMA PONTE QUEBRADA]


Nunca fui senão uma ponte quebrada
à espera de um dia inteiro

Uma infância presa
entre muralhas
à espera de um dia novo


Canto irregular, Averno, Lisboa, 2018.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

HELDER MOURA PEREIRA

[FUI A UM BAR BEBER UM COPO]


Fui a um bar beber um copo,
por acaso era irlandês, ali ao cais
do sodré. Toda a gente cantava
de cerveja na mão, mas quando
chegou àquela parte and I found
a wife in the town I loved so well
comovi-me, engasguei-me, a caneca
escorregou-me das mãos e partiu-se
no chão. Alguém se aproximou
para me dar palmadinhas nas costas
e ainda hoje a coisa que melhor
sabe fazer, de longe, a coisa
em que é mesmo especialista,
é dar-me palmadinhas nas costas.


Às escuras (com José Amaro Dionísio, Fátima Maldonado e Fernando Cabral Martins), 100 Cabeças, Lisboa, 2016.

domingo, 28 de janeiro de 2018

JOSÉ CARLOS SOARES

[ABRES O DICIONÁRIO]


Abres o dicionário
não querendo traduzir
a sombra, apenas
navegar

na restante sabedoria
dos clássicos. Uma ou outra
mancha na camisa
acende-se

na procura dos vocábulos.
Há um desastrado voo
em tudo isto:

O que vejo
é uma foice
degolando esperas

e a noite imensa,
amarga,
nos joelhos.

Telhados de Vidro, n.º 22, Averno, Lisboa, 2017.

sábado, 27 de janeiro de 2018

JOSÉ ANTÓNIO ALMEIDA

MEDITAÇÕES PORNOGRÁFICAS


[...]

Algumas vozes, jovem e benévolo leitor, poderão dizer que pornografia é o assunto menos apropriado para quem, como eu, começa a medir a existência não por anos, como os novos, mas por décadas, como os velhos. Ora, em meu cansado ver, parece que se enganam. É por uma questão de tempo acumulado de experiência que deste modo e nestes termos falo, pois estou, meu amigo invisível, a entrar com paz e sem azedume nessa idade em que já se vai preferindo o calor de certas imagens, assim como o braseiro de raros livros amados, à frieza cadavérica das pessoas. E de resto, tudo isto muito em breve de pouco há-de importar finalmente, caro irmão que de passagem me lês e de quem com pena despedindo me vou apartando devagar, porque razão tinha por inteiro e em grau superlativo Camilo Pessanha ao escrever os versos: «Imagens que passais pela retina / Dos meus olhos, porque não vos fixais? / Que passais como a água cristalina / Por uma fonte para nunca mais!...».


Telhados de Vidro, n.º 22, Averno, Lisboa, 2017.

domingo, 7 de janeiro de 2018

MIGUEL MARTINS

[NÃO, NÃO SÃO OS POEMAS QUE ME INTERESSAM]


Não, não são os poemas que me interessam,
mas os poetas, os gritos noite dentro,
a casa que é alheia e se faz minha,
seja defronte ou em Paris ou mesmo
numa centúria distante e repintada.

O Alex esconjurando a impotência,
o Silva Ramos engravatando o vinho,
o Mário Alberto apostrafando as pedras
da Avenida, ou o sagaz mendigo
da Nazaré, todo onomatopeias.

Não, não há verso que luza mais afoito
do que a rosa de crepe num bordel
quando a comeste, com sal e pimenta,
e recitaste, com pompa vitoriana,
o preçário, tal fora a nossa vida.


O caçador esquimó, Fahreneit 451, Lisboa, 2017.