domingo, 30 de agosto de 2009

PEDRO MEXIA

OS DINHEIROS


Judas não se enforcou na figueira.
A figueira é uma árvore benigna.
Judas enforcou-se
nos trinta dinheiros.


Senhor Fantasma, Oceanos, Lisboa, 2007.

domingo, 23 de agosto de 2009

M. PARISSY

O TEU FUMO

o meu retrato do mizé

amar todo o amor impossível
foi o caminho do teu animal
envelhecido e estropiado

guardaste retratos de tempestade
levaste universos inteiros
no bolso mais pequeno da tua mochila
execraste promontórios

o farol do teu sonho
nunca te deu sinais de liberdade

respiram por ti as tintas
cores de fantasmas exibindo
esperma cornos e ruas estreitas
poetas que perseguem visões sulfurosas
o imaturo rosto do teu fumo


Cafurnas, edição do Autor, Nazaré, 2002.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

RENATA CORREIA BOTELHO

DEUS NOS LÍRIOS

para a minha mãe

sinto deus, todas as noites, nos lírios
de Monet. olham para mim,
por esta sombra incerta que morre
aos poucos comigo, cobrem
de seiva viva a escuridão da casa
e afastam os demónios
que se escondem nas frestas do sono.

pela manhã, junto as pétalas tenras
caídas no lençol, e rezo baixinho,
com os pardais, um verso branco.


Telhados de Vidro, n.º 12, Averno, Lisboa, 2009.

domingo, 16 de agosto de 2009

MIGUEL-MANSO

WIM MERTENS
Stratégie de la Rupture


o Pragal (e evitámos sempre
peregrinações que fossem para lá
da praia mais a sul da Caparica) era
uma manhã muito branca

vindos de Lisboa e da Noite
ainda os olhos ruminavam os reflexos do rio
que havia maquinado beleza e cegueira
dentro do comboio da ponte e de nós

a sala de desenho
– com a palavra Deleuze a giz no quadro negro
seguida de mais uma daquelas citações bastante
herméticas e, diga-se, cheia de erros ortográficos –
era tão branca como a manhã do Pragal

alguns de nós eram os menos talentosos
artistas do Reino

eu, por exemplo, que preferia mil vezes
o almoço na cantina, a comer o coração da mãe
para entender a linguagem dos pássaros
e apreciava a chegada do bom tempo
cultivando a preguiça nos jardins

a minha produção, é verdade, caminhava já
para um lugar etéreo, ténue, um desses lugares
que podemos encontrar apenas no Dicionário de
lugares imaginários (nem deve ter sequer entrada)
limitava-me a marcar em algumas folhas
uns insuspeitos carimbos
que comprara

em lugar das académicas vaias
havia para nós, Joana, músicas


Telhados de Vidro, n.º 12, Averno, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

ANTÓNIO BARAHONA

ALFARRABISTA


Hoje comprei um livro de Raul de Carvalho
por um euro, o que considero um escândalo!
Os poetas, regra geral, sempre foram pobres,
mas a sua poesia vale muito mais do que
o peso de mil resmas de rouxinol em oiro.
Isto, evidentemente, pouca gente sabe.
Se muita gente soubesse
os poetas seriam todos ricos.


Telhados de Vidro, n.º 12, Averno, Lisboa, 2009.

domingo, 9 de agosto de 2009

MANUEL FERNANDO GONÇALVES

FIM DO FIM


Fim de um ciclo.
Ainda ontem
passeavas na Cedofeita, ao pé
do futuro e da turbulência.
Hoje falas com se, ao telefone,
fosse outra vez a mesma voz
e a ausência se resolvesse
com o breve, nervoso gargalhar,
o disfarce da respiração suspensa,
o rubor de seres outra pessoa.
A memória é uma bela plasticina!


Fechamos a Alma, ao Fim da Tarde, com Estrondo e Animação, & etc, Lisboa, 2007.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA

SAUDADES DO QUE NÃO FUI

Para Manuel de Freitas

Saudades da boémia que não sei:
O excesso de bebida. O charro.
(Eu sempre fui respeitador da lei,
Mas de barro.)

Saudades do balcão com a amizade
E o copo de cerveja.
(À noite, despe-se a cidade:
Único corpo nu que me deseja.)

Saudades do carinho
No ombro, na coxa, no cabelo.
(A mão da morte entorna o vinho
À sede de bebê-lo.)

Saudades desse alguém
Que não sei onde mora.
(E não sei de onde vem
Quando demora.)

Saudades do amor
Que nunca foi o meu.
(E de que sou acusador
E réu.)

Saudades a exigir ao velho
A vertigem da fuga.
(Mas não se pode destruir, no espelho,
A ruga.)

Restos de Quase Nada e Outras Poesias, Averno, Lisboa, 2006.

domingo, 2 de agosto de 2009

A. M. PIRES CABRAL

CÃO MORTO


Fomos contemporâneos
este cão e eu

e eu sobrevivi-lhe

e isto é tremendo.


A Perspectiva da Morte (de Trirreme), org. Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009.