quarta-feira, 29 de julho de 2009

ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE

[HOJE QUE ME SINTO]


hoje que me sinto
perfeitamente morto,
seria o bom momento de romper
a membrana celeste, implacável de azul,
sair, independente, para o lugar de pensamentos
lúcidos, quase reais! mas

fico preso à gangrena, o precioso
lugar dos músculos na carne,
e a memória do prazer mistura-se ao redondo
fio do horizonte;
não estou, afinal, senão vazio de todos os corpos,
apenas alheado das maquinações e dos

encontros. Deixo ficar a paisagem como está,
quando não olho é que as árvores se iluminam por dentro.


A Perspectiva da Morte (de As Moradas 1 a 3), org. Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009.

domingo, 26 de julho de 2009

ARMANDO SILVA CARVALHO

O FRIO


Tocar com a língua
na cúpula do ar.

Acomodar os víveres
movimentar o vento.

Fazer deste poema
um frigorífico.

Nas prateleiras ácidas
o silêncio (duplo) dos peixes;
o choro terno e tenro
da hortaliça.

Tocar com as palavras
na cápsula do mar.

Incomodar os vivos.
Mexer na carne com dedos
subversivos.

Impor aos homens
esta abundância fria
colhida nos catálogos.

A elegância
dos ovos
em repouso.

Um mulher serena sonha
com o frio; corre-lhe
pelo corpo o leite desnatado
e fica nos anúncios
pensativa.

No íntimo do corpo
há fendas numeradas
onde o fresco se atreve
a conservar os nervos.

Está na hora
de refrescar a boca.

Donas de casa
e pensadores diários
eis aqui uma demonstração
gratuita do frio.


A Perspectiva da Morte [de O Comércio dos Nervos], org. Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

NUNO JÚDICE

A VARANDA DE JULIETA


Uma vez, entrei em verona para não entrar
em veneza. Entre o vê de verona e o vê
de veneza optei por ver verona. Gostei da
coincidência das consoantes na janela
de julieta; e sei que em veneza não ouviria
o vento da vingança, nem provaria o veneno
de uma volúpia que só em verona se
desvanece com a vida. Não há canais em
verona, como em veneza; nem há janelas
em veneza, como em verona; mas Julieta
espreita a rua, da janela que é sua, e se
ninguém diz a senha que só ela sabe, agita
o lenço molhado pelas lágrimas que as
nuvens bebem, levando-as de verona até
veneza, onde a chuva as deita nos canais.


Pedro, Lembrando Inês, Dom Quixote, Lisboa, 2001.

domingo, 19 de julho de 2009

CARLOS BESSA

[COM UMA DISCUSSÃO ENSAIAR A MORTE]


Com uma discussão ensaiar a morte
Ou requerer a pose, um reinado. Sim
Agarras-te aos encontros, à amizade
Sobretudo a essa civilização do bom dia
Boa tarde. Mil modos de laçar a gravata
Cortar as unhas ou cruzar os braços
Para que do desejo não transpareça
Senão uma pequena falta, facilmente desculpável.
Mas a sociologia, como a psicologia, meu caro
Há muito te trazem no catálogo.


Lançam-se os Músculos em Brutal Oficina, & etc, Lisboa, 2000.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

AMADEU BAPTISTA

[UMA DOENÇA ESMAGADORA, COMO A QUEDA]


uma doença esmagadora, como a queda
de um raio. no reflexo infinito
da infância recebes a notícia
de que alguém que conheceste

acaba de morrer. sentes, no início,
uma tontura imensa, a sala a andar
à roda, o corpo a implodir,
sob as meninges

um som a ecoar. depois, pouco depois,
vais-te acalmando, e pensas que, afinal,
o mal não é a morte, mas sentir

a pura perda em tudo,
a lenta sedição do esquecimento.
uma doença sempre inevitável.


Negrume, & etc, Lisboa, 2006.

domingo, 12 de julho de 2009

GIL DE CARVALHO

À SAÍDA DO DELTA


O antebraço dela
Vai na curva menor
Fechar-se no dele.
À saída do delta.

Agarra-lhe o pulso.
Mal se tocam, na rua
Separados talvez por
Uma geração ou duas.


De Quatro e Cinco, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

MANUEL DE FREITAS

REBECA


Já não vai buscar a bola,
defendê-la entre o cetim dos dentes
ou fugir como quem procura,
enquanto me obrigava
à altura baixa que deixou de ter,
na alcatifa de que foi princesa
e eu agradecido súbdito.

Já não – sempre já não –
os dias que quase vivemos,
prometidos à extinção, avessos
à rima inútil de um sorriso.
Tenho os dedos secos, sossegado
o colo onde depunha sem favor a cauda.
Yorkshire Terrier, seis anos, morta.

Nunca a incomodou que
eu cheirasse – e muito – a gato.
Seguia a bola, indiferente
ao pavor de haver mundo, corpos
inertes, cadáveres que gostaram dela.

E de quem gostou, pois um animal
não mente: existe como não sabemos,
na mais curta distância, numa rendida
proximidade que subitamente termina.

Foste poupada ao cálculo, à usura
– mas nem por isso à dor,
pequena distracção de Deus.
A bola chegou ao fim do corredor
e ninguém ma trouxe, desta vez.
Vencer essa dor é encontrar mais dor,
chamar por um nome que não existe.

A não ser que conheças Lázaro (mas
Lázaro, receio, é nome que não se dá a uma cão)
e que ele tenha uma bola só para ti
e que o teu pêlo de cobre e prata
volte a ser uma certeza,

vou ter, Rebeca, muitas saudades tuas.


Theacher was here, org. e edição de Inês Dias, Lisboa, 2009.

domingo, 5 de julho de 2009

RUI MIGUEL RIBEIRO

ROMA


Roma, outra vez, um regresso.
Com o fim do Verão, a casa cobre-se
de um tom mais escuro,
provoca maiores movimentos,
sem nunca permitir um silêncio.

Os livros e os papéis estão revoltos
pelo quarto como despojos de um
tesouro assaltado. Os dedos trazem
ainda restos secos de palavras.
Apenas a tua presença era uma defesa,
um último refúgio para o corpo.

Ao fim do dia, no regresso de mais uma tarde
preenchida de livrarias, dizias-me que parecia
um livro fechado.

E não sei o que te responder.


Europa e Mais 3 Poemas, Letra Livre, Lisboa, 2007.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

RUI LAGE

LARGO DA MATERNIDADE


Não te esqueças
do que é preciso comprar na mercearia:
leite e pão para dar ao dente,
jornais e revistas para folhear,
tabaco no quiosque do Zé Silva
(morreu de cancro, é claro,
se não é uma puta, a vida,
não sei o que será
por mais que me apeteça vivê-la).

Se demorar, é porque assisto embevecido
à migração dos autocarros
ou às obras na rodovia
(também tu sabes ser às vezes
um martelo pneumático),
ou porque algo me trouxe a esta mesa
ao pé da porta do W. C.,
de onde não sairei antes de a noite
pousar no cinzeiro
e rua abaixo, escadas acima,
me empurrar até à porta do lar.

Estarás porventura à minha espera.
Eu, decerto fora de mim,
entrarei no quarto,
alheio às nódoas na camisa
que hás-de lavar no tanque amanhã,
nódoa negra no braço
e pala no olho
a tapar o inchaço.


Revólver, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2006.