domingo, 30 de maio de 2010

JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES

AS CADEIRAS

pousou uma mosca aqui

À aula de
quarta-feira assistiram 13 alunos e
27 cadeiras. Em resumo: a sala cheia.
Quando a
lição terminou os 13 alunos partiram e
acto contínuo contei 20 casais de cadeiras.
Às aulas que tenho dado nunca faltam
as cadeiras
ficam a ouvir-me atentas
(as costas muito direitas).
É bom de ver que as cadeiras entendem
tudo à primeira
parecem ser mais maduras (mais
pés
assentes na terra).


A Parte pelo Todo, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2009.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

SOLEDADE SANTOS

SWING PARA MANHÃ DE SOL


na casa vazia
eu deus o mundo por fazer
e danço

swingo com pano
do pó aspirador
cadeira e canto
swing enche a minha casa
e roupa suja espalhada
no chão misturada
com lápis legos ferraris

ó sol tão amarelo
na janela
a roupa fumega
varal colorido manhã de 6.ª feira
swingo com ella oh baby
sing me a swing song and let me
dance

que a vizinha de baixo é surda creio
pois não se queixou nunca nem
dos gritos à noite
dos gatos


Divina Música: Antologia de Poesia sobre Música, org. Amadeu Baptista, Conservatório Regional de Música de Viseu, 2009.

domingo, 23 de maio de 2010

MANUEL ANTÓNIO PINA

ESPLANADA


Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora do liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.


Diga Trinta e Três [de Poesia Reunida], org. João Gesta, Teatro do Campo Alegre, Porto, 2008.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

MANUEL DE FREITAS

BENILDE, SENTADA


Benilde, nessa tarde, tinha dores
e estava viva, se me desculparem
o truísmo. Abandonara o balcão,
por uma vez, sentando-se perto
destes versos. Eu tinha apenas febre,
um cansaço de tudo e de mim também.

Anoitece, de facto, cada vez mais cedo.
À falta de clientes, as sombras do jardim
irrompem pela taberna, contornam
devagar o oratório do Grupo Excursionista
Os Gosmas. Pergunto-me se algum deles
estará ainda suficientemente vivo, se
o pequeno comboio os levou ou não
até ao fim da dor, agora iluminado.

Mas não me respondas, poema.
Deixa-te ficar ao lado de Benilde, sentada
e tranquila nesta tarde de Novembro.

A noite não precisa de palavras.


A última porta [de Terra sem coroa], org. José Miguel Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

domingo, 16 de maio de 2010

ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE

[ESTA NOITE, OUTRA NOITE]


Esta noite, outra noite,
esta manhã que nasce pelas frinchas
da janela pequena entreaberta,
por planaltos e vales caprichosos,
lagos azuis, ravinas, e pinhais,
irei de vez em quando perguntando
onde existes? onde estás?
Talvez te enroles no lençol, ou seja
tua esta voz que canta em língua estranha,
ou por galáxias amplas de aventura
noutro quarto quebrado me procures
para existires em mim uma vez mais.
Que medo tenho de ir perdendo a sorte
em armários de gente contrafeita,
e ser, quando voltares, imunda fera
morta, sem dentes, numa esquina ou poço,
o último exemplar da sua espécie;
eu que seria jovem para sempre
em cada pensamento, em cada gesto,
em cada rima obscura do teu verso.


Uma Fábula, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A. M. PIRES CABRAL

PERGUNTAS


Tenho sempre, na algibeira da noite,
algumas vigorosas perguntas de reserva,
prontas a disparar em legítima defesa
contra o negrume.

Algumas são pequeninas, vulgares
aspectos de pormenor.
Outras, pelo contrário, são enormes,
desabridas como a boca dum forno –
do género porque é que deste quatro,
e não seis, ou oito, pernas à rã.

Hoje ocorre-me fazer a menor de todas:
se foste tu que fabricaste o tempo
e a ele nos acorrentaste?
e com que barro? e com que raio
de segunda intenção?

Se é que não foi apenas por descuido.
Ou até casualmente, como acontece às vezes
ao cientista que faz experiências
e acaba por descobrir seja o que for.


Resumo: A Poesia em 2009 [de Arado], Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

domingo, 9 de maio de 2010

GONÇALO M. TAVARES

[OS OSSOS DO ARROZ]


Os ossos do arroz.
O Grande Perónio.
Ou por exemplo os Músculos do arroz.
O externocleidomastoideu alojado no arroz, no centro do arroz.
Questão:
o arroz, assim, no geral,
a areia, por exemplo,
terão estes elementos, que são exércitos, um centro?
Os soldados têm centro?
Não pode ser o general porque o general não é soldado;
o centro dos soldados tem de ser um deles: soldado, mas se for escolhido, de entre eles, um centro, então esse deixa de ser soldado, porque este por definição é igual aos outros, e assim não, passa a ser centro.
Portanto: os soldados não têm centro, tal como o arroz.
A não ser que o centro seja algo que não é MATÉRIA, mas espaço--entre, no meio.
Deus, por exemplo, seria um bom centro para o arroz e para os soldados.
Principalmente para o arroz.
Deus como Centro Exacto dos Iguais.
Se o arroz tem centro, este é o Pão Grande, isto é: Deus.


Investigações. Novalis, Difel, Algés, 2002.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

ANTÓNIO RAMOS ROSA

[ESTOU OLHANDO OS FRUTOS REPOUSADOS]


Estou olhando os frutos repousados
e as pequenas sombras alongadas
sobre a mesa de madeira e pedra.
A brisa entra por uma porta antiga.
Uma pétala branca cai de uma flor branca.
Sou, mais do que sou, estou
na perfeição das coisas que me envolvem.
Repouso na sinuosa exactidão.


Poemas [de A Rosa Esquerda], Leya, Lisboa, 2009.

domingo, 2 de maio de 2010

MIGUEL-MANSO

OS CARIMBOS DE GENT


há maneiras bem piores, mesmo assim
de queimar a juventude

faltam ainda, no momento em que escrevo
sete carimbos até ao final
sete anos de pastor Jacob servia
ou seis, caso o leitor me confirme que
tem na sua frente este poema

sinal de que o mesmo terá sido, também ele
um dos escolhidos para definhar junto dos outros
no esmerado lote do terceiro livro

o livro beat
– de beatitude, assentemos assim –

se está a pensar, eventual leitor, acompanhar-me
mesmo que de modo fortuito, neste escusado exercício
saiba que nunca estive tão perdido como agora

duvide de tudo o que lhe parecer escorreito
não se deixe enganar sequer pela imprecisa
citação dos clássicos

Santo subito, edição do Autor, Lisboa, 2010.