domingo, 28 de janeiro de 2018

JOSÉ CARLOS SOARES

[ABRES O DICIONÁRIO]


Abres o dicionário
não querendo traduzir
a sombra, apenas
navegar

na restante sabedoria
dos clássicos. Uma ou outra
mancha na camisa
acende-se

na procura dos vocábulos.
Há um desastrado voo
em tudo isto:

O que vejo
é uma foice
degolando esperas

e a noite imensa,
amarga,
nos joelhos.

Telhados de Vidro, n.º 22, Averno, Lisboa, 2017.

sábado, 27 de janeiro de 2018

JOSÉ ANTÓNIO ALMEIDA

MEDITAÇÕES PORNOGRÁFICAS


[...]

Algumas vozes, jovem e benévolo leitor, poderão dizer que pornografia é o assunto menos apropriado para quem, como eu, começa a medir a existência não por anos, como os novos, mas por décadas, como os velhos. Ora, em meu cansado ver, parece que se enganam. É por uma questão de tempo acumulado de experiência que deste modo e nestes termos falo, pois estou, meu amigo invisível, a entrar com paz e sem azedume nessa idade em que já se vai preferindo o calor de certas imagens, assim como o braseiro de raros livros amados, à frieza cadavérica das pessoas. E de resto, tudo isto muito em breve de pouco há-de importar finalmente, caro irmão que de passagem me lês e de quem com pena despedindo me vou apartando devagar, porque razão tinha por inteiro e em grau superlativo Camilo Pessanha ao escrever os versos: «Imagens que passais pela retina / Dos meus olhos, porque não vos fixais? / Que passais como a água cristalina / Por uma fonte para nunca mais!...».


Telhados de Vidro, n.º 22, Averno, Lisboa, 2017.

domingo, 7 de janeiro de 2018

MIGUEL MARTINS

[NÃO, NÃO SÃO OS POEMAS QUE ME INTERESSAM]


Não, não são os poemas que me interessam,
mas os poetas, os gritos noite dentro,
a casa que é alheia e se faz minha,
seja defronte ou em Paris ou mesmo
numa centúria distante e repintada.

O Alex esconjurando a impotência,
o Silva Ramos engravatando o vinho,
o Mário Alberto apostrafando as pedras
da Avenida, ou o sagaz mendigo
da Nazaré, todo onomatopeias.

Não, não há verso que luza mais afoito
do que a rosa de crepe num bordel
quando a comeste, com sal e pimenta,
e recitaste, com pompa vitoriana,
o preçário, tal fora a nossa vida.


O caçador esquimó, Fahreneit 451, Lisboa, 2017.