domingo, 17 de abril de 2011

JOSÉ MIGUEL SILVA

ANDRÉ GIDE

Para o Joaquim Manuel Magalhães

O mais veloz corredor da sua geração, pelo menos
no arranque, não admira que tenha chegado primeiro
a muito lado. Mas tão cedo partia, invariavelmente,
que nem louros nem medalhas, pois a prova ainda não
tinha começado. Sofria essa mania de correr por fora
de qualquer certame, por conta própria, em mandatos
espontâneos, auto-atribuídos. Deste modo, andava
sempre sozinho, porque quando os seus émulos partiam,
já ele estava em casa, a preparar com a sombra a sua
próxima aventura, que no fundo consistia em abrir pistas
para quem viesse atrás. Assim, se queria conversar com
alguém, só lhe restava fingir uma queda no senso-comum,
uma lesão no joelho – e amiúde o fazia, pois na verdade
pouco tinha de misantropo, chegando mesmo a execrar
como maldita a compulsão que o levava a partir antes
do tiro de largada, e a chegar primeiro onde ninguém
o esperava. Talvez isso explique a timidez de anacoreta
que sempre exibia, e a prudência relativa das suas passadas.
Dez ou vinte anos depois, acelerados epígonos diriam
morosas as suas corridas, convenientemente esquecidos,
como é próprio de retardatários sem vergonha, que se
faziam melhores tempos (os que faziam), era em pistas
utilmente batidas e inauguradas por ele, o pujante pioneiro.


Público, Lisboa, 16 de Abril de 2011.