quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

RUI PIRES CABRAL

UMA CASA NA PADARIA

para a Daniela Gomes

Era uma casa qualquer onde a linguagem se sentava
como uma rainha. Não havia terra que ficasse
perto, o próprio ar já nos mordia os braços
e havia um rato morto na cozinha.

Pintávamos criaturas incompletas no vermelho inteiro
das bisnagas, por vezes o nosso retrato às avessas
com sombras no coração. Pelos telhados
os gatos vinham visitar-nos com cautela, as plantas
duravam pouco nas unhas de cada mês.

Havia tempo de sobra e um lance de degraus
que subia vacilante até onde fosse preciso.
E nós lá em cima cheios de graça,
com frio nas mãos e tinta nas mangas.


A super-realidade (2.ª edição, revista), Língua Morta, Lisboa, 2011.