Vinte e dois dias de férias, fins-de-semana, feriados, e vida nenhuma para ser a vida do escritor que seria, pelo menos de acordo com o funcionário que pontual pica o ponto, sem braço nem manguito a opor ao avanço da horda liberal.
Ó brilhante aluno que trocou ciências por letras quando ninguém esperava e, bem se sabia, letras são tretas com as quais nem os anjos se governam, quanto mais ele que em vez de asas tinha dores nas costas e, longe do paraíso, contas e impostos a pagar num torpe arrabalde dominado por espertos e caciques.
Ó promissor escritor a ficar fora de validade, passam os anos, passam os livros magros, esforçados, passa a indiferença que em torno deles se abate, a tua realidade são estas quatro horas por noite, estes quatro muros fechados, este quarto de vida roubado ao cansaço, ao tempo de sono, ao convívio com os outros, à alegria de escrever até. Um amador esforçado, um diletante sem meios de o ser, é isso que és. Um parvo, em suma. Ou, no melhor dos casos, um equivocado.
Deito vinho no copo, acendo um cigarro, releio o que escrevi. Não, nada há de errado, está tudo certo. Esta a vida real do escritor que sou, nas quatro horas, nos quatro muros, que me delimitam. Mais não há e, com solução ou sem, não é equívoco.
Cão Celeste, n.º 8, Lisboa, 2015.