LADRÕES DE BICICLETAS — VITTORIO DE SICA (1948)
Mil quilómetros por dia pedalava meu pai, desde
a cama junto ao Douro até à próspera Cerâmica
de Valadares. Se qualquer homem recebe,
à nascença, uns sessenta inimigos por hora,
imaginem a jornada de um operário ciclista.
Tudo são despesas para ele: o rosário de geada
nas giestas, o jornal atropelado pelo vento, o verdor
da Primavera, a poalha do suor em cada mão.
Meu pai, é claro, não se queixa, ganha um conto
de réis, tem uma casa portuguesa e grandes sonhos
de amanhãs a gasolina. Pelo menos não trabalho
em nenhum matadouro, pensa ele, e com razão,
erguido nos pedais do seu veículo de sombra,
solitário trepador pela encosta de Avintes. Não
trabalha em nenhum matadouro. E nesse reconforto
passa à Quinta dos Frades, alcança o Freixieiro,
sente já o rumor de fumacentos camiões na nacional,
onde tudo, depois, será muito mais plano.
Movimentos no Escuro, Relógio d'Água, Lisboa, 2005.
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