Demais sei eu que o que passou passou,
a história não é uma serpente
que se refaz em cada primavera,
mas quando muito morde a própria cauda;
que os que aqui moraram já nem ossos são,
soprou sobre eles o tempo
e extinguiu o pouco fogo que eram;
que cessou todo o ruído, de festa ou de querela,
dissolvido no ácido dos dias;
que os lugares onde acaso podia ter ficado
impressa alguma pegada acidental,
algum risco na pedra com vocação de história,
estão ocultos por silvas e aveia brava.
Demais eu sei que os horizontes
que vamos recolhendo do alto das muralhas
com as afectuosas pinças da alma
– contrariamente aos que moraram e morreram –
permanecem os mesmos:
perpétuo desafio ao vento e ao olhar.
Então, se tudo isso sei:
carne friável, minerais perenes;
e se com tudo isso me conformo, como homem
sobre quem também soprará
o tempo e está disposto a perdoar;
porquê esta água insubmissa
que devagar me molha o reverso dos olhos?
Novas Memórias de Ansiães (com Manuel de Freitas, Rui Pires Cabral e Vítor Nogueira), Averno, Lisboa, 2007.