quinta-feira, 30 de setembro de 2010

RUI NUNES

MÉDIO ORIENTE


Explode:
as mãos traçam um som insuportável:
a história pára nesse gesto
mas recomeça um pouco mais à frente.
O que sobra de um corpo
é a silenciosa queda dos destroços.
O trigo escurece, as rêses comem a própria carne,
e os gafanhotos anunciam a manhã do ódio:
o desenho do tempo fica dia a dia mais nítido.

os vidros resguardam-no do clamor
e nos vasos de begónias floresce o néon.
Sentado à secretária, o homem risca uma palavra,
leva as mãos aos lábios,
medita,
e reescreve a morte.

como se diz este último resíduo,
estes corpos que irradiam morte,
o anónimo de uma luz insuportável?
como se diz uma palavra
meticulosamente destruída,
estes sons desavindos?
ou uma criança que não sabe correr?

a eternidade é a bebedeira dos desesperados:
viagem rápida, dia em estilhas
que acaba em três ou quatro gotas
no vidro da janela:
insectos esborrachados contra um pára-brisas.

é preciso decifrar os escombros.


Telhados de Vidro, n.º 14, Averno, Lisboa, 2010.