NÃO SEI
Poéticos, os deuses?
Eles não têm sangue.
Debaixo do céu inerte,
a ave que foi trespassada
e cai como um trapo
no tronco de árvore de Botticelli
tinha sangue.
Ou a pantera
do Jardin des Plantes
que incansavelmente
percorre a sua jaula
de um lado para o outro,
cerrando lentamente as pálpebras
sobre o mundo, tem sangue.
Ou as três gotas de sangue na neve
que causam o assombro
abismado de Parsifal
têm origem viva, que se torna poética
quando chegam a ele.
A poesia
são gotas, inúmeras,
secas ou ainda frescas,
sangue, sempre sangue,
o preço líquido
que a vida paga
pela fuga constante
a si mesma,
a caminho
do que não existia
antes de
ela lá ter chegado.
A poesia
quer que cheguemos,
aonde ela chegou.
– E chegamos?
Claro que não.
– E os deuses?
Esses incutem
pavor e esperança:
pavor na vida que temos,
feita do pó do universo,
esperança em chegar a eles
depois dela.
– E chegamos?
Não sei. A qual deles?
Nove fabulo, o mea voz: De novo falo, a meia voz, Pianola, Lisboa, 2016.
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