BENILDE AO BALCÃO (III)
Um dia, Dona Benilde, vamos
estar todos mortos,
exactamente mortos. O dominó
calar-se-á de vez e a serradura,
essa, já não vai ser precisa
para limpar um vómito menos reticente.
Não é grande nem formosa e grata
a novidade da sentença.
Mas para já estamos vivos,
quase exactamente vivos:
o anão lowryano com a sempiterna
muleta, o velho Porto e os sapatos desiguais
que hão-de-distrair, quem sabe,
o seu olhar frio mais morto do que a morte.
E o espectro de Lowry, já lhe
falei dele. Ao canto do balcão,
embora um rato passe e se perca
no vermelho sujo do chão que nos
protege. Até mais ver, até.
Um dia, Dona Benilde,
ter havido este dia
vai ser apenas um mau poema,
o retrato desfocado de uma cidade
que se dissolve, importando
novas gentes, novos hábitos,
que não nos incluem decerto
— porque os mortos, essa gente exacta,
não sabem falar. Morreram.
Suite de pièces que l'on peut jouer seul [de Game over], Corsário-Satã, São Paulo, 2017.
Há 3 horas