domingo, 27 de julho de 2008

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

O TESOURO


Quando me levaram de casa dos meus pais
guardei comigo o meu tesouro. Uma caixa
de cartão, que um elástico fechava, dormia comigo
escondida dentro dos lençóis. Coisas de que
só eu sabia o nenhum valor. O carimbo de
borracha do avô Jaime, um dente meu, de leite, que
eu mesmo arrancara,
um coral da ilha de Moçambique que me dera
o tio Patuleia, duas moedas com as efígies de
D. Luís e de D. Carlos. Mais umas coisas que
o tempo perdeu na jornada da infância.

Mas uma noite o tesouro
ficou dentro de uma gaveta, não mais o levei para
atravessar comigo a jaula do sono. De
gaveta em gaveta, descubro-o
quando mudo de casa. Não é fácil afastar a caixa
esmaecida onde adormeceu. Primitivo, como os
primeiros princípios da filosofia ou
os primeiros sons de um verso. Hei-de por fim
perdê-lo, como no horizonte se forma e desfaz a
arte poética de um arco-íris.


Termo de Óbidos, Relógio d'Água, Lisboa, 2006.