COM A MINHA MÃO
Com a minha mão que ainda escrevia, toquei a
sua face
e estremeci.
Quebraram-se os cálices, os espelhos, as lâmpadas
que iluminavam a minha idade,
a minha vida.
Alguém gritou, de repente,
e a sua voz profunda golpeou para sempre o
adormecimento das casas.
O cisne disse a última palavra no lago à
deriva,
e o tigre preparou o salto quando nos seus
olhos se acenderam dois archotes.
Os cordeiros do quinto mês
procuraram, em pânico, os redis do anoitecer.
Com a minha mão que ainda ardia, toquei
a sua lã,
que mais tarde teria a cor do sangue,
a cor do medo na sua alma.
Caminhei pelos campos vermelhos,
pouco depois do extermínio.
Parei, perplexo, sem dizer nada,
sem ser capaz de olhar outra vez o coração das
trevas.
Estás perdido, ouvi ao longe,
à saída da floresta,
estás perdido nos labirintos que te perseguem
durante o sono.
Com a minha mão que ainda arde, escrevo,
esqueço,
sou aquele que parte.
Esta Voz É Quase o Vento, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004.
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