NA ASSEICEIRA, LENDO SOBRE A VIDA E A OBRA DE PAUL GAUGUIN
A luz de fim de Agosto declina sobre
o terraço desta casa na província
onde leio que
o pintor Paul Gauguin
se esquivou às obrigações familiares
abandonando mulher e filhos
para poder viajar pelos Mares do Sul
e «perseguir a sua arte».
Por ter lido agora estas palavras
ergo os olhos da página 57
e vejo à minha frente
o bando de corvos poisado
nos grossos cabos eléctricos,
a planura do céu, o campo de milho
mais extenso das redondezas
onde se escondem os meus filhos
um do outro, e os dois de mim.
Para Gauguin, regressando à leitura,
o apelo da criação,
o amor profundo pela pintura
falaram mais alto do que a prosa
da existência pequeno-burguesa
da segunda metade de Oitocentos
motivo que o conduziu à rejeição
«dos deveres convencionais
para com a família»,
definitivamente deixada para trás.
Mas, mesmo sublinhando frases claras,
não se torna evidente para mim
se o pintor fez o «que sentiu
que tinha que fazer para atingir
o seu mais alto grau de excelência pessoal»
e, deste modo, legar aos homens
«o fruto da sua arte»
(como argumentam Shai Biderman
& Eliana Jacobowitz)
ou se, mais exasperadamente
do que possa parecer,
a pintura foi a tábua de salvação,
o último recurso para a fuga
ao pântano (outros dirão ao inferno)
da vida conjugal, em Copenhaga,
com Mette Sophie Gad e as 5 crianças.
Quanto a mim,
gostaria de desfazer a dúvida
e prosseguir a leitura,
no entanto, na província,
o sol de fim de Agosto dissolve-se
por detrás do telhado da casa
e a noite vai estendendo uma frescura ventosa
que torna praticamente impossível
o acto de ler.
Quase às escuras
restam-me, pois, os gritos dos filhos,
algures,
e a voz da minha mulher a dizer
que é preciso pôr a mesa para o jantar.
Por isso,
porque não estamos no Taiti
nem no século XIX
nem eu sou o famoso pintor primitivo
moderno Paul Gauguin,
marco a página, fecho o livro
e levanto-me
para tratar dos pratos e talheres.
O poema, desculpem, tem que ficar por aqui.
Resumo: A Poesia em 2009 [de Criatura, n.º3], Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.
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