para Glória de Freitas
No limite da raiva e da impaciência,
perdíamos autocarros atrás de autocarros
(o que já vai sendo costume, nos meus poemas).
A tia entrou naquele em que não entrámos.
Só nos voltaríamos a encontrar no Funchal,
pouco antes do regresso a casa.
Em vez da raiva, o sorriso da tia virou-se
para mim, dizendo: «isto ainda vai dar escrita,
Manuel António». Não se enganava, enquanto
atrás de nós se apagavam ou acendiam as luzes do Monte
e os esqueletos de vaca pediam a voracidade comum.
Mas prefiro lembrar a dança inútil
de um acordeão, a boneca de farinha
comprada pelo meu pai no Caminho das Babosas,
essas impronunciáveis coisas que da morte apenas
nos tornam para sempre cúmplices, vagas testemunhas,
embora te ficasse bem o colar de funcho.
Caminho das Babosas [de Boa Morte], edição do Autor, fora do mercado, Lisboa, 2010.