segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA

ANNA MAGNANI


A mãe de Luis Buñuel, no fim da vida,
folheava revistas, página por página,
não reconhecia os filhos, placa giratória
em torno da qual os objectos se instalavam
ou, de súbito, nasciam. A mãe de Luis
Buñuel, no fim da vida, feita um aviso.

A luz inclina-se nos telhados de Lisboa,
assegurando que nem um sopro condensa
no negativo. Há noites em que conseguimos
alcançar uma tristeza comum: a cadela
mordisca a pata, eu fumo um cigarro.
Do enquadramento resulta a insensatez do equilíbrio:

uma greta de frieiras, o cieiro nos lábios,
a maldade que resiste numa máquina eléctrica,
desligada. Escrevo à luz das velas,
haverá linhas baralhadas. Um comércio
de sucedâneos, de imitações rasteiras
de vigarices caducas, tem dourado o século.

Não têm conta os utensílios baratos
que se podem comprar, até a crédito.
Finge-se que não se percebe. Como sofrer,
sem reclamar o sofrimento? Um rosto que exige
renúncia, a fé toda que foi extraviada,
um abismo, de olhos enxutos.


Poemas com cinema [de Peças desirmanadas e outra mobília], org. Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.