quinta-feira, 30 de novembro de 2017

RUI ÂNGELO ARAÚJO

[LEMBRO-ME DE UMA COISA]

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Lembro-me de uma coisa que aconteceu num dia de nevoeiro, disse eu a Leonardo, mas tenho a certeza de que não é isto que quero recordar ou esquecer em dias assim, embora tenha sido a minha primeira experiência com a morte. A avó de  umas crianças do bairro morreu quando eu estava na casa da sua família por razões que já não lembro. Houve um grito da criada, um tropel de passos no soalho e, não sei quanto tempo depois, um adulto pesaroso, creio que com algumas lágrimas, mandou-nos severamente brincar na rua. As mais velhas das crianças tiveram tempo de saber o que se passara e sentiram um alívio que não podiam compreender ao serem dispensadas de constrangimentos. O quarto da idosa ficava no corredor que dava para a rua e ao passarmos eu pude ver-lhe o rosto, o mesmo rosto de cera, enrugado e impassível, que eu conhecia de outras visitas, soerguido pela mesma almofada. Na rua o nevoeiro imperava e, entranhando-me nele como num sonho, com poucas coisas que observar e rodopiando lentamente no passeio, eu revi repetidamente aquela imagem.

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Hotel do Norte, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, 2017.