sábado, 30 de agosto de 2008

MANUEL DE FREITAS

SUPERMERCADO

para a Ana Paula Inácio

Tenho 35 anos e sei finalmente o que
quero. Basta olhar para o cesto
de compras: bolachas Leibniz, papel
higiénico Renova, leite com chocolate
Agros e, claro, uma garrafa de Famous
Grouse e pelo menos seis latas de Super Bock.
Discos já tenho que cheguem, por muito
que me desminta, e não viverei o suficiente
para ler todos os livros que me ocuparam a casa.

É um bocadinho banal, eu sei, mas é a minha
prestação diária enquanto consumidor, o meu fado
simples, enxuto, quase isento de lágrimas & remorsos.
Acordo para almoçar no Doce Lindo (ou Doce Belo, ainda
não houve rotina que me fizesse decorar o nome),
passo pelo supermercado, onde desejo ou nem por isso
todas as ternas e voláteis isildas deste mundo perfeito
– e volto a subir devagar as escadas de madeira rombas.

Só muitas horas depois, quando as luzes
me garantem que o bairro inteiro dorme,
escrevo poemas como este, versos em que
inutilmente vos digo que sou um homem feliz,
un roseau pensant, o mais belo cadáver de Lisboa.


Telhados de Vidro, n.º 10, Averno, Lisboa, 2008.