domingo, 18 de janeiro de 2009

JOSÉ MIGUEL SILVA

QUATRO


Nesse tempo ainda as raparigas
não tinham sido inventadas.
Éramos só nós, o bando dos andróginos,
a correr atrás dos gatos.

Amoras e ameixas acenavam-nos
atrás de gradeados.
Quem mijava a cinco metros
empunhava o caduceu.
A ordem natural era seguida
com feroz habilidade.

Nenhum de nós sabia
o decálogo de cor. À força
e ao arrojo chamávamos humano.
Entrávamos em Tróia de joelhos
esfolados. E uma pedra, bem lançada,
valia um argumento.

O pior que nos podia acontecer
era sermos exilados, condenados
a brincar ao invisível
com a raça das escuras raparigas,
aprender a passajar o verso heróico.

Só mais tarde o gineceu saiu à rua;
trazendo laçarotes, mandamentos,
aromas esquisitos. Mas isso, já se sabe,
é outra história.


Vista para um pátio, Relógio d'Água, Lisboa, 2003.