O FRIO
Tocar com a língua
na cúpula do ar.
Acomodar os víveres
movimentar o vento.
Fazer deste poema
um frigorífico.
Nas prateleiras ácidas
o silêncio (duplo) dos peixes;
o choro terno e tenro
da hortaliça.
Tocar com as palavras
na cápsula do mar.
Incomodar os vivos.
Mexer na carne com dedos
subversivos.
Impor aos homens
esta abundância fria
colhida nos catálogos.
A elegância
dos ovos
em repouso.
Um mulher serena sonha
com o frio; corre-lhe
pelo corpo o leite desnatado
e fica nos anúncios
pensativa.
No íntimo do corpo
há fendas numeradas
onde o fresco se atreve
a conservar os nervos.
Está na hora
de refrescar a boca.
Donas de casa
e pensadores diários
eis aqui uma demonstração
gratuita do frio.
A Perspectiva da Morte [de O Comércio dos Nervos], org. Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009.
Há 1 hora