quinta-feira, 28 de outubro de 2010

DIOGO VAZ PINTO

I


Ainda que corras, vives do mesmo,
das cansadas histórias que ouviste
aos outros, nestas cidades de sal
e varandas com berros
de roupa estendida. Acordando,
entre os vinte e os trinta, verde
ainda, num colchão de molas baixinho,
armação de ferro que guincha exageros
e te chama herói nas alturas.

A respiração sustida no cheiro da
hortelã brava, a água do duche
a correr entre largos quartos de hora.
Chávena, cigarro e a cantilena dos pardais
afogados em lixo e no barulho das obras
— tempestade artificial destas manhãs.

Ao pequeno-almoço a escolha
entre sumos de frutas que nunca viste,
as torradas e omoletas com tudo
o que tinha na despensa. Ela a rir-se,
de cabeça meio inclinada, frigideira
na mão e a preferida entre
todas as suas poses. Um chupa
ao canto da boca e a mancha louca
do batôn sobre os lábios e à volta.
Embrulhado nesta fita caseira,
trama de polaróides a trepar pelas
paredes. As amigas todas, ferozes
princesas, com as mãos cheias
de arroz e confettis. E é isto:
a mania efabuladora, aquele tom
sidéreo e o fogo que larga em frases
sem grande sentido. Assim faz de ti
esta coisinha obediente, tola
e contente. «Vais buscar o pão?»


Criatura, n.º 5, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2010.